sexta-feira, 19 de abril de 2013

Capoeira iluminada – história de mestre Bimba e da capoeira

 

A capoeira moderna I: Regional

É a partir do final da década de 1920 que Manuel dos Reis Machado (1900 – 1974), o mestre Bimba, desenvolve na Bahia a sua famosa capoeira Regional, que, apesar do seu nome, foi a primeira modalidade de capoeira a ser praticada em todo o Brasil e no exterior. Passamos a resumir as modificações introduzidas por Bimba na capoeira então existente, para podermos discutir os aspectos mais controversos em seguida.

Bimba partiu de uma crítica da capoeira baiana, cujo nível técnico considerava insuficiente, sobretudo se confrontado com outras lutas e artes marciais, que começavam a ser difundidas então no Brasil. (43) Conforme o depoimento de um aluno seu, Atenilo, chegou a propor aos outros mestres inovações importantes para serem adaptadas em conjunto, oferta que estes recusaram (Almeida, 1991, p.20). Decidiu então criar um estilo novo, que passou a ensinar na sua academia, fundada em 1932. (44) Em 1937, a Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Pública do Estado da Bahia reconheceu oficialmente a sua academia, outorgando-lhe um certificado de professor de Educação Física.

Bimba não somente transferiu a prática da capoeira da rua para um recinto fechado, a academia, mas a fragmentou em “exercícios fundamentais” a serem praticados diariamente, “seqüências” e a roda propriamente dita. Em outros termos, como já foi destacado por muitos autores, criou um método de ensino formal para uma prática até então predominantemente informal. Uma das inovações mais controversas foi a introdução de novos golpes, cujo número total aumentou consideravelmente, e de uma série de movimentos (reunidos por mestre Bimba em uma seqüência denominada “cintura desprezada”) que usavam o contato físico direto para treinar a flexibilidade da coluna e a capacidade do capoeirista de cair em pé quando projetado em um “balão”. A capoeira Regional definia-se, do ponto de vista técnico, por ser uma luta praticada numa posição mais ereta do que a capoeira baiana tradicional e de usar golpes mais altos e geralmente mais rápidos.

Bimba também introduziu uma hierarquia até então inexistente na vadiação baiana, onde distinguiam-se calouros, formados e formados especializados. Para enfatizar esta hierarquia, criou um toque de berimbau, Iuna, onde somente alunos formados tinham o direito de jogar. Os estudantes eram sujeitos a uma estrita disciplina, não deviam fumar nem beber, e não deviam se envolver em rodas de rua. Esses preceitos constavam de um mural afixado na academia de Bimba. Outra inovação fundamental foi a mudança radical do meio social onde recrutava seus alunos. Passou, durante certo período, a exigir-lhes carteira profissional, e conseguiu atrair muitos alunos das classes médias. Entre 1939 – 42 chegou a ensinar capoeira no quartel do Centro de Preparação de Oficinas de Reserva do Exército, no Forte do Barbalho.  Apesar de ter algum reconhecimento oficial, não conseguiu prosperar economicamente e morreu, como todos os outros velhos mestres, na pobreza. Foram seus inúmeros alunos que levaram a capoeira Regional para as outras regiões do país.

O primeiro a propor uma interpretação do surgimento da capoeira Regional, ultrapassando os meros lamentos dos tradicionalistas sobre a “descaracterização” da “verdadeira” capoeira, foi Júlio César Tavares (1984), na tese de mestrado em sociologia intitulada “Dança da guerra: arquivo-arma”. Não há, no entanto, em sua análise, uma percepção dicotômica – que veio a predominar posteriormente -, em que se torna necessária a opção pela Angola ou pela Regional, mas a concepção de que a Regional está integrada à construção de uma nova “retórica do corpo”. Mais tarde, em analogia com o trabalho de Ortiz (1978) sobre a umbanda, Alejandro Frigerio (1989) analisou as mudanças introduzidas pela Regional resultando na esportização da arte, destacando a crescente burocratização, a incorporação de elementos das artes marciais orientais, a cooptação ideológica e política pelo “sistema” e as concepções evolucionistas subjacentes. Tem o cuidado, porém de diferenciar as práticas de Bimba com o desenvolvimento ulterior da Regional (1989, p.95) que para ele significa, tanto pelo conteúdo como pelo universo social dos praticantes, um “embranquecimento” de uma arte negra. Sua análise, porém peca pelo fato de ele adotar como verdadeiro o discurso dos angoleiros sobre a capoeira, tanto Regional como Angola, sem dar conta da complexidade e contradições internas dos dois.

Partindo de um enfoque weberiano, Luiz Renato Vieira defendeu tese de mestrado em 1990, publicada em 1996, sobre a Regional como um aspecto da modernização cultural no Brasil. Neste trabalho, faz uma análise pormenorizada das inovações técnicas introduzidas por Bimba (Vieira, 1996, p. 144-171) que relaciona com o ambiente político e cultural da década de trinta. A recodificação dos rituais, símbolos e gestos operada por Bimba corresponderia a um novo ethos subjacente, que se define, segundo Vieira, pela oposição à malandragem. “A noção de eficiência, que permeia todas as instâncias da Capoeira Regional, aparece como o principal princípio de classificação na visão do mundo que envolve a capoeira criada por Mestre Bimba” (Vieira, 196, p.162). Finalmente ressalta “a afinidade existente entre as proposições de Mestre Bimba, enquanto líder, e os interesses dos grupos sociais dominantes no contexto social em que se inseria” (Vieira, 1996, p.169).

Esta interpretação foi discutida em dois trabalhos recentes. Antônio Liberac Pires (1996a, p. 38-40) critica, sobretudo a falta de fontes para corroborar muitas afirmações feitas, e questiona a validade da reconstrução da história a partir dos discursos da tradição. Letícia Reis (1993, p. 83-84) pondera que interpretar a Regional apenas como um projeto moderno e conformista “não dá conta da complexidade e da dinâmica cultural do mundo da capoeira” e “não consegue explicitar a ambiguidade da capoeira”. Ela mostra que a Regional “resiste quando se conforma”, guardando “elementos que reafirmam a identidade étnica nas músicas, nos toques do berimbau e nos próprios movimentos”.

Estas observações são procedentes e vão nos ajudar a rediscutir alguns pontos controversos. Não questionam a tese central que a compreende Regional como uma modernização da capoeira baseada no modelo autoritário das décadas de 30 e 40, mas permitem relativizá-la. De fato, Reis, em vez de opor a Regional à Angola em termos de modernização / tradição, foi a primeira a analisar estas duas modalidades da capoeira como “duas opções (negras) de esportização” e, portanto, de modernização. Concordamos com a sua análise e adotamos uma linha parecida neste trabalho, insistindo na distinção entre a capoeira baiana tradicional, a “vadiação”, e a Capoeira de Angola praticada hoje.

Voltando ao mestre Bimba: é significativo o quanto as afirmações feitas por seus alunos, seus biógrafos e outros mestres diferem entre si quando tratam justamente dos aspectos que dizem respeito à relação do mestre com a cultura negra e com o poder. Alguns dos velhos mestres reconhecem que Bimba introduziu golpes de outras lutas (tanto orientais como ocidentais), sem, no entanto condená-lo por isto. Já Édison Carneiro (1977, p.14), na sua defesa da capoeira negra e “autêntica”, atribuiu a esta suposta fusão, que qualificou como “mistura de capoeira com jiu-jitsu, Box e catch”, um caráter negativo: “A capoeira popular, folclórica, legado de Angola, pouco, quase nada tem a ver com escola de Bimba”. Na mesma tecla bateu Jorge Amado, chamando a Regional por esta razão de “deturpação que não merecia confiança (apud Rego, 269), Waldeloir Rego (1968, p.269, 285-87), apesar do seu interesse primordial pela capoeira tradicional, fez uma avaliação muito mais serena das inovações introduzidas por Bimba, ressaltando, além do carisma do mestre, o ritual de formatura e a importância da cultura negra na mesma.

Os alunos de Bimba que se tornaram mestres e escritores, como Acordeon (Almeida 1986, p.32), Jair Moura (1991, p.21, 41) e Itapoan (Almeida 1994, p.48), têm levado em consideração e revalorização da cultura negra nas últimas décadas e a possível perda de capital simbólico implicada no reconhecimento de que a Regional teria adotado golpes “alienígenas”. Buscando argumentos contra a acusação de branqueamento, têm insistido sobre o também afro-brasileiro batuque (45) como fonte de inspiração para os golpes novos introduzidos pelo mestre. Apontaram para o fato inconteste de que o pai de Bimba era conhecido batuqueiro. Mais concretamente, diversos ex-alunos seus têm indicado golpes específicos que seriam oriundos do batuque (Almeida, 1991, p.32; 1994, p.48). Outros argumentam que Bimba não podia ter conhecido todas estas lutas na década de vinte para inspirar-se nelas, ou que, posteriormente, apenas passou a ensinar como se defender dos ataques destas lutas, sem, contudo imitar-lhes os golpes, o que teria sido mal interpretado (Almeida, 1994, p.48). (46) Contudo, a posição mais ereta da capoeirista ao realizar os golpes da Regional, como o martelo, por exemplo, não deixam de apresentar fortes analogias com golpes de lutas orientais, assim como as projeções e os agarramentos. Mas até hoje falta uma análise mais aprofundada desta questão, que se basearia numa análise pormenorizada das inovações técnicas da Regional. Seja como for, não deixa de ser irônico que o chamado “branqueamento” ou ocidentalização das técnicas corporais da Regional é, quando muito, uma “orientalização” que escapa a classificações simplistas.

Quanto à influência da ideologia do Estado Novo sobre o mestre Bimba, faltam fontes que comprovem a adesão do mesmo a estes ideais. No entanto, podemos constatar, como o fez Vieira em análise detalhada, a correspondência entre o ethos da capoeira Regional, com a sua insistência sobre a eficiência, a hierarquia, a ordem e a disciplina, e os princípios divulgados na mesma época pelo Estado autoritário, que tentava justamente combater a ideologia da malandragem tão arraigada nas classes populares urbanas, e da qual o ethos da “vadiação” baiana representa um caso paradigmático. Existem, além disso, indícios claros que comprovam, ao nosso ver, a influência direta de ideologias autoritárias. O melhor exemplo é a saudação da capoeira Regional (o “Salve” de braço esticado, ainda hoje utilizado em algumas academias do interior), de clara inspiração fascista. Vale ressaltar, porém, que muitas inovações formais, dos uniformes aos regulamentos da academia, passando pelos símbolos (escudo com a estrela de São Salomão) e textos didáticos, foram elaboradas por alunos de Bimba, que tinham não somente origens sociais diversas, mas também horizontes ideológicos diferentes. A própria relação do mestre com o poder estabelecido tem sido apresentada de maneira bastante diferente por seus alunos. As já referidas apresentações de Bimba para o interventor Juracy Magalhães e o presidente Getúlio Vargas sempre servem para sugerir a proximidade do mestre com o poder, assim como o fato de ter ministrado aulas a oficiais no Forte do Barbalho e o seu envolvimento com os militares, interessados nas suas técnicas de guerrilha. Se isto, por um lado, está bem longe de comprovar a adesão unilateral de Bimba aos princípios autoritários, por outro demonstra o seu anseio de difundir a capoeira fora do seu meio de origem. Segundo alguns alunos, mais identificados com a esquerda, como Muniz Sodré e Jair Moura, mestre Bimba teria sido simpatizante ou mesmo militante do Partido Comunista Brasileiro (apud Capoeira, 1992, p. 77-79). Esta informação, que provém apenas de depoimentos destes alunos e não é comprovada por fontes escritas, foi categoricamente contestada por outros mestres e alunos.
Estes pontos ilustram o quanto a história da Regional se situa no centro de um debate fundamental sobre os valores constitutivos da brasilidade e das formas contraditórias que a modernidade assume no Brasil.

A capoeira moderna II: a reinvenção da Angola.

Se a capoeira Regional se autodefine em grande parte como ruptura com a vadiação antiga, a capoeira Angola insiste na continuidade com a mesma. A sua proposta explícita é tradicionalista, no sentido de manter, o quanto possível, os “fundamentos” ensinados pelos antigos mestres. No entanto, as transformações ocorridas na sociedade brasileira mais ampla, assim como as mudanças introduzidas na própria prática dos angoleiros a partir de 1941, não deixaram de resultar em mudanças significativas que a diferenciam bastante da vadiação do início do século.

A emergência da capoeira Angola moderna está estreitamente associada à figura do mestre Vicente Ferreira Pastinha (1889 – 1981). Pastinha aprendeu capoeira ainda antes da virada do século, segundo suas próprias palavras, com “um velho africano”. Ingressou para a Marinha como aprendiz em 1902. Entre 1910 e 1922, muito antes de Bimba, portanto, já ensinava capoeira para seus colegas aprendizes, e depois para estudantes que viviam nas redondezas (Reis, 1993, p.94; Decânio, 1996, p.44). Mas deixou de ensinar por muitos anos e só veio a assumir a direção de outra academia em 1941. A esta altura, a capoeira Regional já se encontrava em pleno desenvolvimento e o grande mérito de Pastinha foi ter percebido a necessidade de inovação dentro da tradição para garantir que a modalidade de capoeira ensinada por ele permanecesse uma alternativa viável à Regional. Se não fosse por ele e alguns outros mestres tradicionalistas, como Valdemar do Pero Vaz e Canjiquinha, é provável que não existisse a Angola de hoje.

Pastinha, então, introduziu algumas mudanças. Passou a denominar sua luta de esporte, para distanciá-la na marginalidade e legitimar o seu ensino. Adotou uniformes, fomentou um espírito de grupo entre seus alunos e introduziu a graduação formal para mestre. À semelhança de Bimba e seus alunos, passou a se apresentar com o seu grupo na Bahia e no Brasil inteiro, nas décadas de 1940-60, garantindo assim à Angola um mínimo de espaço público. Conseguiu também a ajuda de alguns intelectuais influentes como Jorge Amado, que o ajudaram a receber um – sempre muito limitado – apoio institucional.

Como a capoeira Regional conseguiu muito maior projeção no período 1950 – 1970, a Angola teve que se definir largamente em oposição a esta para justificar a sua existência. Assim, investiu em todos os aspectos que estavam perdendo importância na Regional, ou seja, a teatralidade, a espiritualidade, o ritual e a tradição. Acreditamos que mesmo os movimentos foram estilizados numa determinada direção com o intuito de se distanciar nitidamente do estilo Regional. Por exemplo, os golpes altos, considerados parte da “descaracterização” da Regional, existiam também na capoeira baiana antiga, conforme depoimento de mestre Canjiquinha (Moreira, 1989, p.81). Esta estilização foi um processo gradual, continuado por seus alunos, que, por sua vez, tornaram-se mestres. No entanto, mesmo entre os velhos mestres podem-se registrar divergências importantes em relação à identidade da capoeira Angola ou à maneira como deve-se preservá-la e impedir a sua exploração comercial. Diferentemente de mestre Bimba, que explicitamente criou um estilo novo, para o qual ele é a referência máxima, os mestres da capoeira Angola se legitimam por seu conhecimento de uma tradição mais heterogênea. Mesmo tendo sido a liderança mais importante dentro da capoeira Angola, semelhante em muitos aspectos a Bimba na Regional, mestre Pastinha nunca chegou à posição deste porque se definia como tradicionalista, e, portanto, não punha em relevo as inovações que introduziu na capoeira Angola.

Apesar das divergências no interior da própria Angola, o estilo foi ganhando espaço e consistência. Contribuíram para isto uma nova geração de angoleiros, fortemente engajados no resgate das antigas tradições e decididos a não se deixar explorar e morrer na miséria como a geração anterior. Deu-se uma convergência com segmentos do crescente Movimento Negro, interessado no resgate das tradições afro-brasileiras. A prática de capoeira passou a ser considerada então um veículo adequado para a conscientização étnica e social.

A partir da década de 1980, a Angola conseguiu inverter aos poucos a situação desfavorável em que se encontrava em relação à Regional. Para isto contribuíram mudanças de paradigmas na sociedade brasileira, como a revalorização da herança africana, a própria evolução da Regional para estilos cada vez mais violentos e o paciente trabalho dos mestres angoleiros, difundindo seus ensinamentos em todo o país e, em alguns casos, no exterior. A partir desta época se multiplicaram as “buscas das raízes” por parte de praticantes da Regional desiludidos ou ávidos por novas fontes de inspiração. O resgate da capoeira tradicional não ficou restrito à capoeira Angola, mas passou a ser advogado também por seguidores de Bimba, que aspiram retornar ao estilo Regional “puro” do mestre Bimba.

Nos últimos anos, no entanto, o panorama da capoeira no Brasil e no exterior se tornou de tal maneira complexo que é impossível atualmente distinguir apenas a capoeira Angola e a Regional. A principal razão disso é que surgiram, principalmente no sudeste do país, estilos que se pretendem intermediários, e que têm sido denominados de “Contemporânea” ou mesmo “Angonal”. Seus defensores partem do princípio de que “a capoeira é uma só” e que dividi-la em “estilos” é enfraquecê-la. Idéias repartidas com veemência pelos “puristas”. Em meio à polêmica, tenta-se, assim, difundir a alternativa de uma espécie de “terceira via” no universo da capoeira. Propostas desta natureza têm sua devida aceitação, principalmente em virtude do enorme contingente de capoeiristas, em escala nacional, que não se enquadram por filiação a nenhuma das duas escolas. Esta convergência, prevista por alguns estudiosos (Lewis, 1992, p.212) e almejada por grande número de praticantes, certamente é uma das grandes tendências na capoeira atualmente. No entanto, é questionável se “uma só capoeira” pode realmente satisfazer as aspirações conflitantes dos diferentes estilos e grupos. O próprio crescimento do número de praticantes, a multiplicação dos grupos e a competição no mercado criam poderosas forças centrifugais. No sentido inverso, os grupos “tradicionalistas” que defendem o resgate das tradições e criticam a crescente confusão de valores decorrente da mistura de estilos e de influências alienígenas tampouco conseguem controlar uma situação onde basta cruzar o oceano para tornar-se mestre.

Referências
Vieira L. R e Assunção M. R Mitos, controvérsias e fatos: Construindo a história da capoeira. 1998.


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